Cabe a interposição dos recursos especial e extraordinário nos procedimentos de Suscitação deDúvida?
Para aqueles que não estão habituados, a Suscitação de Dúvida é uma espécie que, revestida de natureza puramente administrativa, segue um procedimento próprio, previsto nos arts. 198 e seguintes da Lei Federal n. 6.015/73, não fazendo coisa julgada e, na minha modesta opinião, não admitindo o manejo dos recursos especial e extraordinário, uma vez que não consubstancia causa, conforme previsto no artigo 105, III, alínea “a”, da Constituição da República.
E esse já era o entendimento do Supremo Tribunal Federal mesmo antes da atual ordem constitucional, conforme se verifica de decisão da Primeira Turma daquele Sodalício, proferida no julgamento do Recurso Extraordinário n. 91.236-3, datada de 17-03-1981 e assim ementada:
EMENTA: - Recurso extraordinário. Dúvida suscitada por Oficial do Registro de Imóveis. Jurisdição voluntária. – O processo de dúvida, de natureza puramente administrativa, não possui o caráter de causa, o que o torna insuscetível de recurso extraordinário. Recurso extraordinário não conhecido. (fonte: site do STF na internet)
A Segunda Turma do STF também comungava do mesmo entendimento, conforme se depreende da decisão proferida no julgamento do Recurso Extraordinário n. 85.606, assim ementada:
Processual Civil. Jurisdição graciosa. Dúvida suscitada pelo Oficial do Registro de Imóveis. Trata-se de procedimento de jurisdição graciosa, embora não regulado no Cód. Proc. Civil. Mas na Lei n. 6.015, de 1973, sobre os Registros Públicos, arts. 202 e 204. Se não houver contraditório entre partes interessadas, mas apenas entre o requerente e o serventuário, a espécie não configura uma “causa”, na acepção constitucional, a ensejar recurso extraordinário. (RTJ-90/913).
Com efeito, o procedimento de dúvida não é regulado pelo Código de Processo Civil, mas sim por dispositivos da Lei Federal n. 6.015/73. Para fins de melhor ilustrar, vale aqui transcrevê-los:
Art. 198 - Havendo exigência a ser satisfeita, o oficial indicá-la-á por escrito. Não se conformando o apresentante com a exigência do oficial, ou não a podendo satisfazer, será o título, a seu requerimento e com a declaração de dúvida, remetido ao juízo competente para dirimí-la, obedecendo-se ao seguinte:
I - no Protocolo, anotará o oficial, à margem da prenotação, a ocorrência da dúvida;
Il - após certificar, no título, a prenotação e a suscitação da dúvida, rubricará o oficial todas as suas folhas;
III - em seguida, o oficial dará ciência dos termos da dúvida ao apresentante, fornecendo-lhe cópia da suscitação e notificando-o para impugná-la, perante o juízo competente, no prazo de 15 (quinze) dias;
IV - certificado o cumprimento do disposto no item anterior, remeterse-ão ao juízo competente, mediante carga, as razões da dúvida, acompanhadas do título.
Art. 199 - Se o interessado não impugnar a dúvida no prazo referido no item III do artigo anterior, será ela, ainda assim, julgada por sentença.
Art. 200 - Impugnada a dúvida com os documentos que o interessado apresentar, será ouvido o Ministério Público, no prazo de dez dias.
Art. 201 - Se não forem requeridas diligências, o juiz proferirá decisão no prazo de quinze dias, com base nos elementos constantes dos autos.
Art. 202 - Da sentença, poderão interpor apelação, com os efeitos devolutivo e suspensivo, o interessado, o Ministério Público e o terceiro prejudicado.
Art. 203 - Transitada em julgado a decisão da dúvida, proceder-se-á do seguinte modo:
I - se for julgada procedente, os documentos serão restituídos à parte, independentemente de translado, dando-se ciência da decisão ao oficial, para que a consigne no Protocolo e cancele a prenotação;
II - se for julgada improcedente, o interessado apresentará, de novo, os seus documentos, com o respectivo mandado, ou certidão da sentença, que ficarão arquivados, para que, desde logo, se proceda ao registro, declarando o oficial o fato na coluna de anotações do Protocolo.
Art. 204 - A decisão da dúvida tem natureza administrativa e não impede o uso do processo contencioso competente.
Art. 205 - Cessarão automaticamente os efeitos da prenotação se, decorridos 30 (trinta) dias do seu lançamento no Protocolo, o título não tiver sido registrado por omissão do interessado em atender às exigências legais.
Art. 206 - Se o documento, uma vez prenotado, não puder ser registrado, ou o apresentante desistir do seu registro, a importância relativa às despesas previstas no art. 14 será restituída, deduzida a quantia correspondente às buscas e a prenotação.
Art. 207 - No processo, de dúvida, somente serão devidas custas, a serem pagas pelo interessado, quando a dúvida for julgada procedente.
Assim, admitir-se a via recursal extraordinária para os casos de processos de suscitação de dúvida, previstos nos artigos 198 e seguintes da Lei de Registros Públicos, seria abrir as portas do Supremo Tribunal Federal para todos os recursos oriundos de julgamentos de processos puramente administrativos por parte dos Tribunais, julgados esses que não possuem o atributo da definitividade, não fazem coisa julgada e não se revestem na qualidade de “causa”, para efeito de acesso às vias extraordinárias, na forma preconizada pela CF/88.
O Colendo STJ, criado a partir da ordem constitucional instaurada em 1988, esposou o entendimento já eleito pelo STF, conforme se extrai de aresto proferido pela Quarta Turma daquele Sodalício no julgamento do Recurso Especial n. 13.637-0-MG, publicado no D.J. de 23-11-1992, página 21.894, e na LEX STJ, vol. 42, página 153, cuja ementa se passa a transcrever:
RECURSO ESPECIAL. ADMISSIBILIDADE. DÚVIDA EM MATÉRIA DE REGISTRO IMOBILIÁRIO.
Dúvida “inversa”, suscitada pelo apresentante de carta de arrematação, face à negativa do oficial público em lançar o título no respectivo registro imobiliário.
O processo de dúvida, quando de natureza puramente administrativa, não havendo contraditório entre as partes interessadas, mas apenas dissenso entre o requerente e o serventuário, não configura uma “causa”, no sentido constitucional, a ensejar recurso especial. Lei 6.015/73, artigos 202 a 204. Recurso especial não conhecido.
Em seu voto condutor, o Relator do acórdão proferido no Recurso Especial acima mencionado, Eminente Senhor Ministro Athos Carneiro, faz remissão aos Recursos Extraordinários de números 85.606 (in RTJ 90/913) e 91.236 (in RTJ 97/1.250), aqui anteriormente mencionados, transcrevendo em seu voto as ementas dos referidos julgados e registrando afirmação por ele feita em sede doutrinária, na obra intitulada “Recursos no Superior Tribunal de Justiça, Ed. Saraiva, página 109”:
... o recurso especial é um recurso extraordinário e, assim, lhe são aplicáveis, via de regra, as construções doutrinárias e jurisprudenciais sobre a natureza, finalidade e admissibilidade do recurso extraordinário...
Esse mesmo entendimento foi mantido quando do julgamento do Agravo Regimental no Agravo de Instrumento n. 29262-3 pela Quarta Turma do STJ, cujo acórdão foi publicado no DJ de 21-06-1993, página 12373, assim ementado:
RECURSO ESPECIAL. DÚVIDA SUSCITADA POR OFICIAL DO REGISTRO DE IMÓVEL.
O procedimento de dúvida, de natureza puramente administrativa, não havendo contraditório entre partes interessadas, mas apenas dissenso entre o requerente e o serventuário, não configura “causa” no sentido constitucional, a ensejar a interposição do recurso especial. Precedente da Eg. Quarta Turma. Agravo Improvido.
É de se notar, que o Relator do acórdão acima referido, Eminente Sr. Ministro Barros Monteiro, fazendo referência à orientação jurisprudencial do STF, assim asseverou em seu voto condutor:
Reza, com efeito, o art. 204 da Lei n. 6.015 de 31.12.73: “A decisão da dúvida tem natureza administrativa e não impede o uso do processo contencioso competente”.
Daí a orientação do Sumo Pretório no sentido de que “o processo de dúvida, de natureza puramente administrativa, não possui o caráter de causa, o que o torna insuscetível de recurso extraordinário”...
No mesmo sentido, é o precedente oriundo da Quarta Turma do STJ no julgamento do Recurso Especial n. 119.600-SP, relatoriado pelo Eminente Sr. Ministro Aldir Passarinho Junior, publicado no D.J. de 05-11-2001, página 114, e cuja ementa é a seguinte:
PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL ORIUNDO DE PROCESSO ADMINISTRATIVO DE DÚVIDA SUSCITADA POR OFÍCIO DE REGISTRO DE IMÓVEIS. ACÓRDÃO EMANADO DO CONSELHO SUPERIOR DE MAGISRATURA DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO. DESCABIMENTO DO RECURSO ESPECIAL.
Decisão prolatada em processo administrativo de dúvida suscitada por Oficial de Registro de Imóveis, colidente com ordem judicial, não está sujeita à competência do STJ, pela via especial.
O Excelentíssimo Sr. Ministro Aldir Passarinho Júnior, relator do aresto acima referido, transcreveu em seu voto condutor parecer do representante do Parquet do Estado de São Paulo, o Procurador de Justiça Álvaro Mistura Filho, que se manifestou pelo incabimento do recurso, nos seguintes termos:
O requisito da exposição do dissídio jurisprudencial foi atendido pelo recorrente e a sua comprovação também, com a indicação de constar o v. acórdão paradigma v. 300, p. 204-5, da Revista Forense.
No entanto, bem é de ver que o recurso especial se destina a julgar causas decididas pelos Tribunais, em única ou última instância. (CF, art. 105, III).
E, no caso dos autos, a decisão nem é de Tribunal, e nem foi decidida na instância judicial.
A Dúvida é procedimento estritamente administrativo, e por isso pode ser revisada na instância judicial ordinária. Não se confunda a sua natureza pelo fato de ter sido decidida por um órgão administrativo do Tribunal de Justiça, a despeito de constituído pelo Presidente do Tribunal, pelo Primeiro Vice-Presidente e pelo Corregedor Geral da Justiça, sob a presidência do primeiro, conforme disposição do art. 2 do Regimento Interno do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.
Nem mesmo o procedimento de Dúvida tem natureza de jurisdição voluntária, em que há administração de interesses privados pelos órgãos jurisdicionais.
Desse modo, a decisão impugnada, por ser administrativa, e não judicial, e assim não produzida por órgão jurisdicional, não se constitui em causa, como requer o art. 105, III, da CF.
O procedimento de dúvida, portanto, é estritamente administrativo, não possuindo foros de jurisdição contenciosa, seja em face da ausência de litigiosidade e da definitividade, seja, ainda, pela não obediência aos princípios da investidura e do juiz natural. Em outras palavras, não se instaura o conflito de interesses típico e peculiar da função jurisdicional do Estado, e os princípios de processo não são observados, como o da demanda, o do dispositivo, o da ampla defesa, a observância do due processo of law e a presença do contraditório. Nem se trata de jurisdição voluntária, pois não há administração de interesses privados pelos órgãos jurisdicionais.
A valer, nos termos da doutrina de Walter Ceneviva:
... dúvida é pedido de natureza administrativa, formulado pelo oficial, a requerimento do apresentante de título imobiliário, para que o juiz competente decida sobre legitimidade de exigência feita, como condição de registro pretendido (Lei dos Registros Públicos Comentada, Saraiva, 9ª. Ed., n. 492, p. 346)
A decisão proferida nesse tipo de procedimento não faz coisa julgada, podendo ser revista na jurisdição contenciosa. O art. 204 da Lei Federal n. 6.015/73, é bastante claro a respeito:
Art. 204. A decisão da dúvida tem natureza administrativa e não impede o uso do processo contencioso competente.
Em comentários a esse artigo, Walter Ceneviva tece o seguinte pensamento:
Cuidou o legislador de eliminar controvérsia quanto à natureza administrativa da dúvida. A decisão nela proferida é de órgão judiciário, mas não corresponde a típico exercício da função jurisdicional.
Não adquire qualidade de coisa julgada. Não vincula terceiro, mesmo que a ela tenha comparecido. Enseja reapresentação do mesmo título pelo interessado, podendo o oficial limitar-se à reiteração da dúvida anterior. A recusa do oficial em prenotar o título sob alegação de que teria de repetir os termos da mesma dúvida julgada, por serem perfeitamente iguais aos anteriores, implicaria o exercício da atribuição do julgador, salvo se caracterizado espírito de emulação, pelo interessado, assim reconhecido pelo corregedor do cartório.
O interessado pode, se afirmada na sentença a procedência da dúvida, servir-se da via contenciosa para deduzir pretensão ao registro, como está no preceito constitucional, de que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”(ob. Cit. N. 532, p. 364).
Diante dessas considerações, não há como se negar que na Dúvida não se tem por configurada a existência de uma “causa”, conforme exigido no art. 105 da Constituição da República, para fins de cabimento dos recursos extraordinário e especial.
Não fazendo a Dúvida coisa julgada, qualquer decisão do Colendo Superior Tribunal de Justiça, julgando recurso especial em procedimento administrativo de Dúvida, será igualmente uma decisão meramente administrativa, e poderá, eventualmente, ser revista por um Juízo de primeiro grau, na forma do artigo 204 da Lei Federal n. 6.015/73, o que levaria à total inversão da hierarquia dos órgãos judiciais.
Com efeito, não sendo dotada de definitividade, a decisão em processo administrativo de Dúvida pode ser revisada através de um processo judicial instaurado através do exercício do direito constitucional de ação, em que será provocada a manifestação da jurisdição estrito senso. Neste ultimo caso sim, o Estado-juiz estará exercendo o seu poder jurisdicional, tendo o seu pronunciamento (sentença ou acórdão) o condão de fazer coisa julgada material, ou mesmo formal.
A partir desse prisma, qualquer decisão do STJ ou do STF em processo de Dúvida, não fará coisa julgada formal ou material, e poderá ser revisada por um juiz de primeiro grau. Podem surgir situações até mesmo esdrúxulas, nos casos em que a decisão de primeiro grau seja contrária à decisão administrativa anteriormente prolatada pelo STJ ou STF. Em não havendo recurso, a decisão jurisdicional transitaria em julgado em sentido contrário ao que tenha determinado um tribunal superior.
Recente decisão do Colendo Superior Tribunal de Justiça, proferida no julgamento do Recurso Especial n. 689.444-RS, pela Terceira Turma daquela Corte, da relatoria do Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, publicada no DJ de 30-04-2007, página 311, reafirma o não cabimento de recurso especial em sede de processo de suscitação de dúvida, in verbis:
Suscitação de dúvida. Pagamento de preparo.
1. Há precedentes da Corte no sentido de que a suscitação de dúvida não é processo que esteja submetido ao julgamento do Superior Tribunal de Justiça, ausente a configuração de causa, assim devendo ser caracterizado o conflito entre o interessado e o oficial do registro competente. Mas, ainda que esse óbice seja vencido, a dispensa de custas para o ajuizamento da dúvida não significa que a apelação esteja isenta de preparo, à mingua de qualquer dispositivo de lei federal que dessa forma disponha.
2. Recurso especial não conhecido.
Como se pode ver dos precedentes trazidos à colação, as Primeira e Segunda Turmas que compõem o Excelso Supremo Tribunal Federal inadmitem recursos extraordinários oriundos de processos administrativos de Dúvida, orientação igualmente adotada pelas Terceira e Quarta Turmas do Colendo Superior Tribunal de Justiça, para efeito de inadmissão de recursos especiais e tais casos.
É o parecer, sub censura.
DR. PHELIPE DE MONCLAYR POLETE CALAZANS SALIM
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